domingo, 24 de maio de 2009

Memorial Reflexivo

Meu nome é Soní Pacheco de Moura, tenho 30 anos e sou professora. Natural do município de Santo Augusto, Rio Grande do Sul, resido, atualmente, em Campo Novo, também situado na região noroeste do Estado. A escolha por minha profissão se deu ainda muito cedo, quando na infância preferia “brincar de aula” a qualquer outra brincadeira, repetindo em casa, com as bonecas, o sermão passado pela professora ou pela autoritária diretora da pequena escola em que estudava. Além do que, vivia rabiscando nas paredes de casa e nos sofás que me serviam de quadro negro, para desespero de minha mãe.
Apesar disso, essa não foi uma convicção, desde a infância. Na adolescência, as dúvidas quanto à carreira a seguir foram inúmeras e pesava o fato de que, em geral, os professores são mal remunerados. Após muita reflexão, apesar dos protestos de minha madrinha, que é professora, e graças ao apoio de meus pais, iniciei o curso de Letras – Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa, no ano de 1997, na Unijuí – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Mas é preciso esclarecer que a escolha por este curso deveu-se muito mais a minha paixão pela leitura e a meu gosto pela escrita, do que pela área da educação, ou pelo desejo de lecionar.
Gostei muito do curso e, embora para cursá-lo, no turno da noite, precisasse lecionar durante todo o dia e viajar, diariamente, 100 km para chegar a Ijuí, onde se localiza o campus da universidade, não sentia a menor vontade de desistir. Lamentava, apenas, que precisasse trabalhar tanto, pois na verdade, gostaria de me dedicar muito mais aos estudos. A educação, nesta época, era apenas a maneira encontrada para custear meus estudos. Dedicava-me aos alunos, preocupava-me com suas dificuldades de aprendizagem, procurava inovar com a ajuda dos professores da faculdade, porém, embora meu trabalho fosse considerado de qualidade por pais e direção, esta não era, definitivamente, a minha prioridade.
No decorrer do curso, descobri que adorava pesquisar. Procurava ir sempre além do que era sugerido pelos professores e, para isso, usava quase todos os finais de semana, a fim de dar conta das leituras. Não demorou para que os professores percebessem minha disposição para a pesquisa, então surgiu a oportunidade de uma bolsa de iniciação científica. Infelizmente, tive que recusá-la, visto que seu valor não seria suficiente para custear meus estudos e despesas de moradia e alimentação, fora da casa de meus pais e em outra cidade. Sendo assim, permaneci trabalhando na Escola Municipal de Ensino Fundamental João Batista Pahins, localizada no interior do município de Campo Novo.
O interesse pela pesquisa, contudo, não diminuiu. No último ano de curso, comecei a planejar meu projeto de mestrado da área de Literatura e, antes mesmo de ter concluído minha graduação, já havia sido aprovada no Programa de Pós graduação em Letras da Universidade Federal de Santa Maria, Rio Grande do Sul. Graças a meu bom desempenho na prova de seleção, consegui uma bolsa de estudos da CAPES e, em 2001, ingressei no Mestrado em Letras, indo residir em Santa Maria, especificamente para estudar, como sempre quis. Finalmente estava sendo paga para fazer o que amava...estudar!
O curso foi maravilhoso e eu aproveitei ao máximo todas as oportunidades de participação em grupos de pesquisa, em seminários, conferências e congressos que o meio acadêmico é capaz de proporcionar. Era outra realidade, outra dimensão de estudos e eu percebia que mais do que a assimilação de conceitos e conteúdos, eu estava me tornando muito mais autônoma em meus estudos, como se eu fosse capaz, agora sim, de aprender qualquer coisa que quisesse estudar.
Meu crescimento acadêmico e enquanto pesquisadora deveu-se, em grande medida, pela minha participação no Grupo de Pesquisa Literatura e Autoritarismo, coordenado pelo professor Jaime Ginzburg e pela professora Rosani Ketzer Umbach, cujas pesquisas eram custeadas pelo CNPQ. Além dos eventos que pude ajudar a promover, os estudos realizados pelo grupo, que reunia-se praticamente todas as semanas para ler textos e debater, influenciaram grandemente meu referencial teórico e, inclusive, o rumo tomado pela minha dissertação de mestrado. Ao estabelecer uma relação entre as literaturas africana e latino-americana, através das obras de Mia Couto e Juan Rulfo, acabei verificando que o contexto histórico de repressão das sociedades em questão poderiam servir como vínculo entre as obras em estudo.
Enquanto bolsista, eu tinha 24 meses para concluir o curso. Então, procurei respeitar os prazos e, novamente, tentei me antecipar aos acontecimentos. Embora pudesse realizar a seleção de doutorado na UFSM, que estava abrindo o curso naquele ano, optei por fazer o doutorado na UFRGS, a fim de vivenciar uma outra experiência. Sendo assim, nos últimos 6 meses do ano de 2002, eu estive me deslocando todas as semanas para Porto Alegre, a fim de cursar algumas disciplinas como aluna especial do programa de Pós Graduação em letras. Nessa época, eu já tinha um projeto de doutorado rascunhado e uma provável orientadora, que eu havia conhecido em um evento promovido pelo Grupo de Pesquisa.
Tudo parecia perfeito, eu consegui concluir a escrita da dissertação com uma certa antecipação, de modo que estava totalmente concentrada no que se poderiam chamar de “projeto doutorado”. Então, pude me preparar para a prova de proficiência, na qual fui aprovada, e também para a seleção em si, que deveria acontecer no mês de novembro. Mas eis que a professora que havia assinado meu ante-projeto não possuía ainda credenciamento na CAPES. Na verdade, ela havia feito a solicitação e estava certa de que não haveria nenhum problema, contudo, as coisas não correram como o previsto e às vésperas da seleção, eu fui descartada do processo por falta de orientador.
Aquela notícia caiu como uma bomba em minha vida. Eu havia planejado as coisas de uma maneira e para mim, naquele momento, era muito difícil rever este planejamento. Julgando-me a criatura mais injustiçada do mundo, eu retornei para o interior, disposta a ficar por um tempo e retomar os estudos, o quanto antes. A volta para Campo Novo, entretanto, serviu para abalar muitas de minhas convicções. Nos dois primeiros anos que se seguiram ao mestrado, enviei muitos currículos para universidades e escolas particulares, mas em todas elas faltava a indicação de alguém influente, o que me deixava realmente indignada. Passei a fazer orientação de monografias e até mesmo correção das mesmas, quanto a ortografia e as normas de produção científica. Mas não era para isso que havia estudado, eu estava insatisfeita com o rumo que minha vida profissional havia tomado, após o mestrado.
Foi então que resolvi atender ao pedido de um grupo de professoras e preparar um curso de língua portuguesa voltado para dois concursos públicos de docentes que estavam para acontecer, um estadual e outro municipal. No decorrer dos dois meses em que ministrei o curso, o contato com as professoras, as conversas dos intervalos me animaram a fazer também a inscrição nos concursos, ainda que pra me testar. O resultado é que fui aprovada em ambos sendo nomeada, em seguida, para a Escola Municipal de Ensino Fundamental Campo Novo e a Escola Estadual de Ensino Médio São Francisco de Sales.
A volta para a sala de aula fez com que eu mudasse o rumo de meus projetos profissionais. Já dizia Martha Medeiros em uma crônica intitulada “O repouso das coisas”, sobre a necessidade de se deixar as idéias, os projetos e os textos descansarem. Isso é uma coisa que eu só fiz porque fui obrigada a fazer, mas que foi de grande valia para minha vida. Quando voltei para a escola e me vi diante de tantos problemas, de tantas questões, senti uma imensa vontade de ajudar a resolvê-lo. Muitos de meus antigos professores, agora meus colegas, me viam com admiração, queriam minha opinião, o que eu “que tinha mestrado”, achava que podia ser feito.
Foi então que percebi o quanto meu curso de Mestrado, apesar de maravilhoso, foi teórico e só então eu compreendi a fala de uma de minhas professoras, afirmando que o mestrado era para nosso próprio umbigo. Ela estava preparando professores para serem pesquisadores ou professores de ensino superior, não para educação básica. Isso permitiu que eu chegasse a duas conclusões fundamentais: em primeiro lugar, eu não queria estudar para meu umbigo e, em segundo, eu precisava aliar minha vontade de continuar estudando à reflexão sobre os problemas com os quais eu e meus colegas nos defrontamos diariamente, no ofício de mestres.